quarta-feira, agosto 02, 2006

MÉTODO CIENTÍFICO E LOGANÁLISE: TERCEIRO MÓDULO

Revendo nosso percurso

A SBL assumiu, desde sua data de fundação, que seu objetivo último é adotar e desenvolver tecnologias capazes executar, tão eficazmente quanto possível, a tarefa de promover, profilática e terapeuticamente, a saúde mental. Vimos, a partir disso, como, por definição, uma tecnologia existe a reboque de uma teoria e, nesse primeiro passo de nossa atividade intelectual, nossa tarefa tem sido metateórica, ou seja, voltada para estipular as características que deverá apresentar a teoria que serve a nossos propósitos. Já determinamos algumas: tal teoria, em relação a seus termos, deverá apresentar características típicas das produzidas e abrigadas pelas chamadas ciências exatas[1]. Uma tal teoria é armazenada e transmitida em nível lingüístico, mas, para que possa nos servir tecnologicamente, deve estabelecer com razoável precisão – ciências factuais não trabalham com verdades absolutas, mas com erros úteis – quais (1) condições devem ser obedecidas e (2) instrumentos devem ser empregados, na passagem do lingüístico para o extra-lingüístico. Relativamente ao primeiro item, concluímos que a teoria que melhor nos serve terá como referidos extra-lingüísticos (1) idealizações, entre os entes de razão e (2) entidades observacionais e inferidas, entre os entes reais, situando-se, portanto, a meio caminho entre teorias científicas de cunho positivista e teorias de natureza metafísica. Para aclarar os instrumentos que patrocinam uma passagem tão consensual quanto possível do lingüístico para o extra-lingüístico, analisamos os conceitos de definiendum, definiens, denotação, conotação, proposição analítica, proposição sintética, referência, referente, referido, transmissão operacional de significado e transmissão ostensiva de significado. Todavia, para fundamentar uma tecnologia, um corpo teórico não deve apenas disciplinar seus processos de referência. Como afirmamos em nosso primeiro módulo:

“Como toda a tecnologia depende de uma teoria, precisamos de uma teoria que nos afirme, no mínimo, algo como – “processos de comunicação de tipo X promovem saúde mental no ser humano” e “processos de comunicação de tipo Y promovem doença mental no ser humano” – para desenvolvermos e aperfeiçoarmos procedimentos que aumentem a presença dos processos de comunicação de tipo X e diminuam a dos de tipo Y.”

Ou seja, precisamos contar com proposições que, estabelecendo relações entre termos da teoria, nos permitam prever, de forma a orientarmos a construção e desenvolvimento de nossa tecnologia de acordo com essas previsões. Se a manipulação tecnológica supõe capacidade de prever, prever, por sua vez, implica explicar, explicar exige a existência de leis e tal existência, por definição, supõe determinismo. Portanto, para servir a nossos propósitos de eficiência tecnológica, a teoria Loganalítica tem que ser determinista. Ora, como, via de regra, o termo determinismo, aplicado às ciências que lidam com o humano, costuma, por ser erroneamente entendido como incompatível com a liberdade de arbítrio, provocar significativo pânico e conseqüente regressão mental nos expostos a tal aplicação, vale nos determos algo longamente na análise das relações entre inferência, explicação, lei, determinismo e liberdade de arbítrio, posto que as existentes entre manipulação tecnologia e inferência já foram abordadas.

Inferência, explicação e lei

Vejamos como abordei essas relações em minha tese sobre o conceito de saúde mental. Começo citando trecho do verbete Explicação de The Encyclopaedia of Philosophy, compilada por Edwards:

“ ... “the logical form of an explanation can be exhibited as follows:

The explanans =
C¹, ... , Cⁿ
L¹, ... , Lⁿ
The explanandum =

E

The explanans consists of two sets of premisses: (1) a set of singular statements, C¹, ... , Cⁿ, describing relevant initial conditions, and (2) a set of general laws, L¹, ... , Lⁿ. The explanandum statement (briefly, the explanandum), E, which describes the phenomenon to be explained, is logically deduced from the explanans. The derivation of E from the C’s and L’s may involve principles of higher mathematics as well as the usual rules of logic.”[2]

O trecho citado refere-se à explicação de fenômenos, mas cabe também considerarmos a explicação de leis:

“A simple example of explanation of a law is the following: Any solid whose density is less than that of the fluid in which it is placed floats in the fluid. The density of ice is less than that of water. The law that ice floats in water is explained from two other laws. The three laws[3] in the explanation share the characteristic that the concepts contained in them refer to broadly observable features of the world; that is the terms occurring in them are exclusively “observational terms”[4]. As a result, the laws are amenable to inductive confirmation by observation of their instances. Laws of this sort are called “inductive generalisations” or “experimental laws”[5]. A theoretically more fruitful kind of explanation is obtained when experimental laws are explained by theoretical laws and principles ... Further, theoretical laws and principles are not isolated statements but often form organised systems of interconnected laws with comprehensive explanatory and predictive power. Science in its advanced theoretical stage has as its primary objective a comprehensive integration and systematisation of diverse experimental laws within a simple and powerful system of theoretical laws.”[6][7]

AXIOMA: Proposição indemonstrável, mas considerada evidente, utilizada entre as premissas de uma demonstração.

EXPLANANDUM: Evento a ser deduzido a partir de um determinado explanans*.

EXPLANANS: Conjunto de condições iniciais e de leis* a partir de que se pode deduzir ocorrência de um determinado evento, o explanandum*.

EXPLICAÇÃO: Processo de dedução de um explanandum* a partir de um determinado explanans*.

HIPÓTESE: Proposição que não pode se confirmada ou desconfirmada diretamente, mas, apenas, a partir de suas conseqüências.

LEI:
Proposição que descreve uma relação constante, devidamente comprovada, entre dois ou mais entes quaisquer.

LEI EMPÍRICA: Lei cujos elementos lingüísticos* referem-se todos a entidades observacionais*.

LEI EXPERIMENTAL: O mesmo que lei empírica*.

LEI TEÓRICA: Lei em que pelo menos um dos elementos lingüísticos* se refere a entidades inferidas*.

POSTULADO: Proposição demonstrável que é utilizada, sem demonstração, entre as premissas de outra demonstração.

TEORIA: Conjunto integrado de axiomas*, postulados* e leis*.

As considerações de Edwards nos permitem construir um esquema que representa os níveis em que opera uma explicação nas ciências factuais[8]:
1) leis teóricas;
2) leis empíricas;
3) descrição de fenômenos intersubjetivamente observáveis.


O nível (3) é explicado pelo nível (2), que, por sua vez, é explicado pelo nível (1). Definida explicação e observada sua relação com a lei ... verificamos que

“explanation and prediction share identical logical structures”[9]

Com efeito, o fato de que uma explicação possa ser usada

“to predict the explanandum event if its premisses had been known before the occurrence of the event is a simple consequence of the fact that the explanation is an argument in logical form. If the premisses are known, there is sufficient warrant, either deductive or inductive, for the assertion of the explanandum as a prediction. In fact, the symmetry in this sense goes deeper; a more sweeping symmetry can be asserted between explanation and projective arguments in general, whether predictive or retrodictive. If E is as explanatory argument explaining an event e, then E can be used to predict e before the occurrence of e, to retrodict e after it, and to infer the occurence of e simultaneously with it.”[10][11]

ARGUMENTO PROJETIVO: Qualquer concatenação de proposições que permite inferir a ocorrência de um evento antes, após ou concomitantemente a tal ocorrência.

ARGUMENTO PROJETIVO-PREDITIVO:
Qualquer concatenação de proposições que permite inferência antes da ocorrência do evento.

ARGUMENTO PROJETIVO-RETRODITIVO: Qualquer concatenação de proposições que permite inferência após a ocorrência do evento.

ARGUMENTO PROJETIVO-SIMULTÂNEO: Qualquer concatenação de proposições que permite inferência simultaneamente à ocorrência do evento.

Vimos, anteriormente, que uma teoria que possa servir a nossos propósitos de construir e desenvolver uma tecnologia haveria de ser capaz de prever. Acabamos de verificar que, se uma teoria prevê, ela, automaticamente, explica. Podemos acrescentar, portanto, às características da teoria loganalítica, que ela terá natureza explicativa. Essa conclusão é tão banal que eu passaria de imediato a discussão de um outro tópico, não fosse a existência de um influente grupo de profissionais que insiste não poderem ou deverem as ciências que tratam do humano apresentar essa natureza. Afirmam que, quando se trata do ser humano, não podemos explicar, devendo contentar-nos com compreender. Esse grupo é barulhento o suficiente para que valha a pena tomarmos algo de nosso tempo pondo às claras a fragilidade de sua argumentação.

A “compreensão” (“Verstehen”)

De volta à tese:

“Uma das características mais notáveis da história do conceito de Verstehen é que, apesar de sua farta tradição[12], nenhum de seus defensores

“has taken the trouble to describe the nature of this method”[13]

Com efeito:

“They have given it various names; they have insisted in its use; they have pointed it as a special kind of operation which has no counterpart in the physical sciences; and they have extolled its superiority as a process giving insight unobtainable by any other methods. Yet the advocates of Verstehen have continually neglected to specify how this operation of “understanding” is performed – and what is singular about it.”[14]

De qualquer forma, o Verstehen tem sido defendido como o método[15] próprio, segundo a famosa classificação de Dilthey, às Geisteswissenschaften, ciências cujo objeto particular é o ser humano, sendo tal Verstehen distinto do método explicativo – hipotético-dedutivo – supostamente próprio às Naturwissenschaften, ciências cujo objeto é o não-humano.”[16]

Já que, como logo veremos, o Verstehen não passa de uma técnica de obtenção de dados – de status análogo, por exemplo, ao do microscópio em Biologia – a proposta de que, nas ciências humanas, ele ocupe o lugar de método, substituindo o hipotético-dedutivo, tem por resultado estabelecer, no âmbito daquelas ciências, uma absoluta falta de critérios intersubjetivos para a rejeição ou aceitação de hipóteses ou teorias. E, como bem acentua Rudner, para uma ciência, a ignorância substantiva – ou seja, em relação a seu próprio objeto – é algo tolerável, mas a ignorância metodológica é mortal[17]. Não saber é suportável, mas não saber quando se sabe ou não se sabe é mortífero. Com efeito, “não existem ventos favoráveis para que não sabe aonde vai”. Vejamos que lugar merece ser legitimamente ocupado pelo Verstehen. O que se segue é uma exposição ligeiramente modificada de formulações defendidas em minha tese:

“Consideramos um postulado ser o homem um sistema teleológico, se, com Ducasse, entendemos necessário e suficiente para que haja teleologia:

“that the following elements be present, or supposed, by the speaker, to be present:
1. Belief by the performer of an act in a law ... /do tipo/ ... ‘If X occur, Y occurs’;
2. Desire by the performer that Y will occur;
3. Causation[18] by that desire and that belief jointly, of the performance of X.”[19]

Ora, se considerarmos que o “Y” da citação acima é basicamente a obtenção de um estímulo ou a evitação de um estímulo, reconhecido o ser humano como um sistema teleológico, toda a “compreensão” do comportamento humano poderia ser reduzida às seguintes variações, que chamaremos de explicações compreensivas*

Primeiro tipo

Explanans:

L = O ser humano efetua, sempre que as condições internas e externas a ele o permitem, as respostas que acredita instrumentais para a obtenção dos estímulos que considera desejáveis.
C’s =
C1 = X é um ser humano;
C2 = X acredita que R1 é uma resposta instrumental para a obtenção do estímulo S1;
C3 = X considera S1 desejável;
C4 = as condições internas de X permitem a execução de R1;
C5 = as condições externas de X permitem a execução de R1.

Portanto,

Explanandum: X executa R1.

Passemos ao segundo tipo de explicação compreensiva:

Segundo tipo

Explanans:

L = O ser humano efetua, sempre que as condições internas e externas a ele o permitem, as respostas que acredita instrumentais para a evitação dos estímulos que considera indesejáveis.
C’s =
C1 = X é um ser humano;
C2 = X acredita que R1 é uma resposta instrumental para a evitação do estímulo S1;
C3 = X considera S1 indesejável;
C4 = as condições internas de X permitem a execução de R1;
C5 = as condições externas de X permitem a execução de R1.

Portanto,

Explanandum: X executa R1.”[20]

E, adiante, concluo:

“Frente às colocações acima, podemos expressar nossa palavra final em relação ao Verstehen. Sustentamos que a falta de clareza conceitual existente em torno desse termo serviu para obscurecer[21] o fato de que ele se refere simplesmente a:

1. Explicação compreensiva, como aqui definida, e cujos dois tipos podem ser assim sumarizados:
1.1. Primeiro tipo: Se X acredita que R1 é instrumental para obter S1, que considera desejável, é “compreensível”, caso as condições internas e externas não o impeçam de fazê-lo, que X execute (tenha executado, vá executar, etc.) R1;
1.2. Segundo tipo: Se X acredita que R1 é instrumental para evitar S1, que considera indesejável, é “compreensível”, caso as condições internas e externas não o impeçam de fazê-lo, que X execute (tenha executado, vá executar, etc.) R1.

Nesse sentido, o Verstehen só adquire legitimidade metodológica, porque, na verdade, não passa de uma variedade de um proceder explicativo. O termo, além disso, também se refere a:

2) Aplicação subliminar – e, conseqüentemente, não controlada – de regras de correspondência que permitem, a partir da constatação da presença de determinados entidades observacionais, concluir pela presença de entidades inferidas relativas a crenças e desejos[22].

O Verstehen, portanto, não pode pretender qualquer inovação técnica ou metodológica, já que nada acrescenta – visto que o emprego de regras de correspondência é um recurso corriqueiro dos procedimentos explicativos – e muito subtrai – pois aplica sorrateiramente algo que, para ter sua aplicação validada, devia ser feita de modo explícito.”[23]


EXPLICAÇÃO COMPREENSIVA: Qualquer explicação* que inclua entre seus C’s entidades inferidas correspondentes a crenças e desejos, supostos presentes pela aplicação de regras de correspondência baseadas no pressuposto da empatia[24].

Penso que a argumentação acima é suficiente para expor a irracionalidade da pretensão de que as ciências que tem por objeto o ser humano devam empregar algum tipo de recurso metodologico essencialmente diferente do empregado, por exemplo, pela Física ou pela Química. Cumpre que paremos de confundir método com técnica. Aliás, já é tempo de que o pensamento científico se desembarace do resíduo religioso que pretende separar o homem da natureza[25]: as ciências humanas são um subconjunto das ciências naturais, devendo enfrentar-se com o fato de, tipicamente, empregarem como intrumento metodológico a explicação compreensiva, nada mais do que um subconjunto da explicação. A Loganálise, portanto, constrói-se como uma ciência natural humana, que emprega a explicação compreensiva no seu arsenal metodológico. Voltemos, após esse desvio, à linha principal de nossa exposição.

A questão do determinismo

Construir uma tecnologia, como vimos, pressupõe a existência de uma teoria que nos permita inferir preditiva, retroditiva e simultaneamente. Inferência implica existência de explicação, explicação, a de leis e a de leis, a de determinismo, se, como é usual, entendemos este último, como

“predictability by means of a law”[26]

Qualquer tecnologia, portanto, depende de uma teoria determinista. Ocorre, contudo, que falar em determinismo, na área das ciências humanas, tende a provocar regressão no aparelho psíquico de quem escuta e isso, naturalmente, provoca “ruídos” no processo de comunicação. Tentemos evitar esses “ruídos”, esclarecendo quatro blocos de questões: o primeiro diz respeito à extensão e ao fundamento do determinismo; o segundo, às relações entre determinismo e causalidade; o terceiro, às entre determinismo e teleologia; o quarto, à compatibilidade ou não entre determinismo e liberdade de arbítrio.

Determinismo: extensão e fundamento

Afirmações sobre se o funcionamento do universo, como um todo, é ou não determinado, ou seja, passível de ser explicado por leis, não é de interesse para o cientista.

“Science, in any given case, will assume what the case requires, but no more.”[27]

Se, entretanto, para um determinado segmento do real, ele procura descobrir uma lei, é, por definição, porque abriga a esperança de que ele seja determinado. Se procura uma lei universal, que não sofre exceções, falamos em determinismo absoluto, se procura uma lei estatistica, falamos em determinismo relativo. No que diz respeito ao que nos interessa, a inferência, as leis estatísticas são menos eficazes do que as universais. Com efeito, se temos algo como –

L1: Em 70% dos pares homem-mulher, o homem tem maior estatura.
C1: João é um homem
C2: Maria é uma mulher

– não podemos dedutivamente inferir “Então, João é mais alto do que Maria”, pois leis estatísticas permitem previsões apenas sobre conjuntos, nunca sobre casos individuais. Já no seguinte caso –

L1’: Se há sintoma conversivo, há sempre recalque.
C1’: João apresenta sintoma(s) conversivo(s).

– posso, então, dedutivamente inferir
E’: “João apresenta recalque”
Pois leis universais permitem previsões tanto sobre conjuntos quanto sobre casos individuais. Interessa-nos, portanto – como interessou a Freud – encontrar leis universais, do tipo L1’, embora possamos e devamos fazer uso de leis estatísticas, enquanto as primeiras não forem encontradas. De qualquer forma, ao buscarmos ou acolhermos leis universais ou estatísticas, estaremos, por definição, abrigando a suposição de que a área sob investigação é determinada. Existe algum fundamento para esse tipo de suposição? Existe, por outro lado, algum fundamento para suposição contrária? Vejamos.

Quanto a hipótese determinista:

1. A fundamentação lógica[28]:
1.1. Indutiva. Sempre que estou supondo ser possível predição através de uma lei, estou supondo que o conjunto do real a que a lei se refere continuará a comportar-se com até agora o fez, o que é uma indução. Fundamentar o determinismo, portanto, equivale a fundamentar a indução. A possibilidade de fundamentação indutiva do determinismo fica, portanto, afastada, por petitio principii.
1.2. Dedutiva. A hipótese determinista é uma proposição universal sintética. Não é analítica, pois faz previsões sobre o real, supondo-o apresentar a estabilidade que justificaria a possibilidade de tais previsões; supõe que a relação encontrada – ainda que essa relação seja uma relação estatística – voltará sempre a ser encontrada. Fundamentar o determinismo é, portanto, fundamentar uma proposição universal sintética. E podemos fundamentar uma proposição universal sintética? Sim, basta que uma das premissas da dedução que a fundamenta seja uma generalização baseada em uma indução[29]. Ora, como, ao colocarmos em questão a validade do determinismo, o que está sendo posto em dúvida é a validade da própria indução, a fundamentação lógica dedutiva do determinismo fica, como a indutiva, também excluída, e pela mesma razão, seja, sofrer de circularidade.
2. Psicológica. A única coisa que justifica pressupor a possibilidade de que algum segmento do real seja determinado - pressuposto da estabilidade do universo - é a ESPERANÇA de que seja assim. Soa estranho, mas, como afirma Feigl, o método científico, tomado como um todo “is, from the view-point of logical reconstruction, a basic convention, capable only of pragmatic but not of cognitive reconstruction”[30], o que vale dizer: “minha constituição psicológica faz que eu PREFIRE repetir comportamentos que deram certo; como tem dado certo acreditar, coeteris paribus, na existência de invariantes, continuo operando como se eles existissem, ... e procurando descobrir outros mais (p.e., no passado, deu certo tentar sair de meu quarto através da porta, e não deu certo tentar fazê-lo através da parede, assim, minha constituição psicológica faz que eu PREFIRA continuar tentando sair dele através da porta e, não, da parede, o que implica logicamente, tenha eu ou não consciência disso, estar eu operando segundo a premissa de que, coeteris paribus, o universo é estável) ”!
Enfim, se quisermos nos manter dentro dos limites do racional, devemos reconhecer que a atividade cientifica se baseia em um pressuposto de estabilidade do universo que não pode encontrar fundamento – NEM CONTRADIÇÃO! – dentro dos limites do racional. O grau de sucesso que tem sido revelado pela ciência não deve, portanto, ser confundido com seu grau de certeza[31].

Quanto a hipótese indeterminista, argumento análogo pode ser desenvolvido para demonstrar que o pressuposto de que um determinado segmento do real não apresenta invariantes – pressuposto, incompatível com a atividade científica, da instabilidade do real – é tão gratuito quanto o oposto – o pressuposto, compatível com a atividade científica, da estabildade do real – de que aquele segmento apresenta tais invariantes. Quem acreditar na impossibilidade de encontrar invariantes (uma “razão preguiçosa”, segundo Kant) esqueça a atividade investigativa, quem acreditar nessa possibilidade (uma “razão operosa”, por simetria) dedique-se a ela[32]. De gustibus et coloribus non est disputandum![33]

Determinismo e causalidade

Definamos uma relação causal da seguinte forma:

“A” causa “B” (ou é causa de “B”), seu efeito, se e somente se:

1. “A” antecede “B”no tempo;
2. Sempre que ocorre “A”, ocorre “B”;
3. Não se conhece nenhum evento “A1” tal que:
3.1. “A” antecede “A1”;
3.2. “A1” antecede “B”; e
3.3. Sempre que ocorre “A1” ocorre “B”.

Assumida essa definição, fica evidente que sempre que se disser que A causa B, está implícito que A determina B, embora, nem sempre que se disser que A determina B, esteja implícito que A causa B, podendo ser seu efeito. Sempre que possível, a Loganálise chegará a proposições deterministas causais, mas sempre que não for possível estabelecer causalidade, como descrita acima, estará satisfeita em estabelecer legalidade: encontrar leis, teóricas ou empíricas, universais ou estatísticas, que estabelecem relações invariantes entre entes reais. Lembremos, como já deve estar claro para meus leitores, que, dadas as definições com que estamos operando, nada há – como também opinam, p. e., Ducasse[34], Mace[35], Rudner[36] e Schlick[37] – de logicamente contraditório em teorizarmos sobre processos teleológicos empregando um modelo determinista causal.

A navalha de Occam

Certa feita, uma aluna me disse que achava Jung superior a Freud, por ser a obra daquele muito “mais rica”. Sugeri que ela passasse a ler Shakespeare, porque certamente iria achá-lo “mais rico” do que os dois. Com efeito, minha aluna estava aplicando a produções teóricas um critério que, certamente, mais cabe a produções literárias. É óbvio que nunca tinha ouvido falar da Navalha de Occam, assim descrita e comentada por Abbagnano:

“por lo menos por lo que se refiere a las totalidade finitas, el orden mejor es el que realiza el máximo resultado con el mínimo esfuerzo y, de tal manera, en la historia de la filosofía, la regra del mínimo esfuerzo há sido entendida como “principio de la economia”. ... Se puede decir que el principio de la economia es formulado por vez primera por Occam en el siglo XIV con las formulas “Pluralitas non est ponenda sine necessitate” y “Frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora”. De ello se sirvió constantemente Occam para eliminar muchas de las entidades admitidas por la escolática tradicional; así, por ejemplo, la especie – sensible o inteligible – como intermediario del conocimiento (Quaestiones in IV libros sententiarum. Lugduni, 1495: II, q. 14, P). Más tarde fue expresado este principio, con el nombre de navaja de Occam, mediante esta formula: “Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem”, fórmula que se encuentra a partir de la Logica vetus et nova (1654) de Clauberg.”[38]

E, adiante, completa:

“Esta exigencia es actualmente reconocida como válida en la construcción de las hipóteses o teorías científicas.”[39]

Se clareza de discurso depende de clareza de pensamento, clareza de pensamento decorre, sem dúvida, de saber-se o que se quer. Se minha aluna soubesse com maior clareza o que queria, estaria servindo-se das estantes do departamento de Literatura... No âmbito da ciência, pede-se riqueza do explanadum – do que se quer explicar – não do explanans – do que se usa para explicá-lo – esperando-se, portanto, que o maior número possível de fenômenos, sejam explicados – e, conseqüentemente, previstos – pelo menor número possível de conceitos, leis, postulados e axiomas. Do ponto-de-vista meramente formal, portanto, a Psicanálise – enquanto produção científica, não literária! – é superior a qualquer outra teoria psicológica, visto não haver outra que explique tão vasto explanandum – que se estende das parapraxes às produções culturais, dos sintomas neuróticos às obras de arte, dos sonhos às perversões, etc. – mediante tão reduzido explanans. Do ponto-de-vista material, devemos, além de considerar a extensão de seu explanandum e a simplicidade (ou economia) de seu explanans, levar em conta a medida em que suas explicações são de fato validadas pela aplicação do método cientítico, cujo modus operandi foi, nessa primeira cadeira do curso de formação em Loganálise, nosso principal objeto de consideração.

Síntese metateórica

As considerações realizadas durante este nosso primeiro encontro nos leva à seguinte caracterização metateórica da abordagem loganalítica:

A PSICANÁLISE LOGANALÍTICA assume-se como uma:
a) CIÊNCIA NATURAL – excluindo, portanto, númemos de entre os seus conceitos –
b) HUMANA – portanto, supondo existência de teleologia –
c) DETERMINISTA CAUSAL – portanto,
d) EXPLICATIVO-PREDITIVA
e) NÃO POSITIVISTA – incluindo, portanto, entidades inferidas entre seus conceitos.

Uma última palavra: o problema da liberdade

Em nossa próxima cadeira, iremos defender que doença mental implica existência de arbítrio decisório-executivo, subconjunto do conceito geral de liberdade. Iremos defender, com Hartmann, que:

“La libertad en sentido positivo no es un minus, sino un plus en la determinación. El nexo causal no permite un minus, porque su ley afirma que, una vez en curso una série de efectos, no puede ser de ningún modo detenida. Pero admite en cambio un plus ... porque su ley no afirma que a los elementos de determinación causal de un proceso no se puedan agregárseles otros elementos de determinación.”[40]

Para alguns soará absurda a idéia de construir uma ciência determinista para, por meio dela, implementar a liberdade humana. Pois é exatamente isso que iremos defender durante todo esse curso: só uma ciência humana determinista é capaz de inferir com precisão quais são as condições existenciais que introduzem o nível extra de determinação capaz de produzir um ser humano livre e quais as que o transformam em um mero joguete de fatores estranhos a sua vontade. Até lá.

[1] A expressão “ciências exatas” não nos parece satisfatória, mas, no momento, não possuímos nenhuma outra que possa mais adequadamente substituí-la.
[2] Edwards, P. (Ed.) The Encyclopaedia of Philosophy. New York: MacMillan, 1967, vol. 3 , p. 159.
[3] Acho um pouco difícil aceitar que a proposição “The density of ice is less than that of water” seja uma lei: tenderia, antes, considerá-la um C¹, ou seja, um ‘statement describing relevant initial conditions”. Mas, enfim, não me parece que isso nos impeça de captar a natureza geral do argumento do autor.
[4] Seja, em nossa linguagem, simbolos que apontam para as nossas “entidades observacionais”.
[5] Prefiro "leis empíricas" a "leis experimentais".
[6] Edwards, P. (Ed.) op. cit., vol. 3 , p. 160.
[7] Ebraico, L. C. de M. Op. cit., p. 20-21.
[8] Cf., também, Feigl, H. “Some Remarks in the Meaning of Scientific Explanation”, in: Feigl, H & Sellars, W. (eds.), op. cit, passim.
[9] Edwards, P. (Ed.) op. cit., vol. 3 , p. 161.
[10] Edwards, P. (Ed.) op. cit., vol. 3 , p. 161.
[11] Ebraico, L. C. de M. Op. cit., p. 22-23.
[12] Bühler, K. Die Krise der Psychologie. Jena: Fischer, 1929; Cooley, H. E. Sociological Theory and Social Research. New York: Scribner’s, 1930; Dilthey, W. Ideen über ene Beschreibende und zergliedernde Pschologie. Leipzig: Teubner, 1894; Erisman, T. Die Eigenart des Geistigen. Leipzig: Quelle, 1924; Häberlin, P. Der Geist und die Triebe. Berlin: Springer, 1924; Jaspers, K. Allgemeine Psychopatologie. Berlin: Springer, 1920; MacIver, R. M. Social Causation. Boston: 192; Rickert, H. Die Grenzen der Naturwissenschaftlichen Begriffsbildung. Tubingen: Mohr, 1913; Rothacker, E. Logik und Sistematik der Geisteswissenschaften. Bonn: Bouvier, 1947; Simmel, C. Geschichtsphilosophie. Berlin: Duncan, 1920; Sorokin, P. Social and Cultural Dynamics. New York: American Book, 1937; Spranger, E. Lebensformen. Halle: Niemeyer, 1924; Weber, M. Gesammelte Aufzätze zur Wissenschaftlehre. Tubigen: Mohr, 1920; Znaniecki, F. The Method of Sociology. New York: Farrart and Rinehart, 1934.
[13] Abel, T. “The Operation called ‘Verstehen’ “, in: Feigl, H. & Brodbeck, M.. Op. cit., p. 678.
[14] Id, ibid., 678-9.
[15] No sentido de “lógica de justificação”. Recordemos Rudner: “O método de uma ciência é, com efeito, o fundamento lógico em que baseia sua aceitação ou rejeição de hipóteses ou teorias.” (Op. cit., p. 19)
[16] Ebraico, L. C. de M. Op. cit., p. 23-24.
[17] “A ignorância substantiva nunca é um defeito de uma ciência. O que constitui um pecado científico particularmente mortal ... é a ignorância metodológica, que pode desorientar, invalidar ou anular investigações importantes, quer para o portador dessa ignorância, quer para os que por ele são influenciados.” (Rudner, R. S.. Op. cit., p. 159)
[18] Que essa cláusula de Ducasse é suficiente para evidenciar que a afirmação de que teleologia e determinismo não são incompatíveis é tautológica.
[19] Ducasse, C. J. “Explanation, Mechanism and Teleology”, in: Feigl, H & Sellars, W. (Eds.), op. cit., p. 543
[20] Ebraico, L. C. de M. Op. cit., p. 24-27.
[21] E, em o fazendo, permitir que dele se fizesse um uso – o de justificar a independência metodológica das ciências humanas, tidas por “compreensivas” em relação às não humanas, tidas por “explicativas” – que, eliminada essa obscuridade, seria impraticável.
[22] As " regras de correspondências" básica do Verstehen é as que giram em torno do pressuposto da empatia: eu sou suficientemente semelhante ao outro para "pondo-me no lugar dele", ver o que eu sinto e desejo e, a partir daí, inferir o que ele pensa e deseja. Não me parece restar dúvida da necessidade de uma boa dose de glasnost relativamente à aplicação desse pressuposto.
[23] Ebraico, L. C. de M. Op. cit., p. 27-29.
[24] Para o uso do Verstehen, portanto, não se aplica a afirmação de Ducasse: “It makes no essential difference to the definition of a purposive act ... whether the words belief and desire which occur in it, be interpreted in terms of consciousness or purely in terms of neurons and nerve currents.” (Ducasse, op. cit., p. 544)
[25] E de posturas como a de Lacan, que entendem a Psicanálise como estando “a meio caminho entre a ciência e a religião” (José Roberto Bastos, com. pessoal). Aliás, só um irracionalista como Lacan poderia travestir-se no papel ridículo de se pretender um defensor de Freud, cujo espírito sempre foi visceralmente avesso a tais promiscuidades epistemológicas. Necandus necavit necaturum. Esse dito latino bem descreve as conseqüências da epidemia lacaniana que atualmente infecta a Psicanálise: a obra freudiana, produzida na intenção de servir como bastião avançado na luta contra a irracionalidade, tornou-se o palco onde impera essa última. As reuniões das sociedades lacanianas são verdadeiros banquetes totêmicos em que os filhos assassinam o pai, ao mesmo tempo que, assustados, dizem estar prestando homenagem a ele.
[26] University of California Associates. “The Freedom of the Will”. Feigl, H & Sellars, W. (Eds.), op. cit., p. 600.
[27] Russell, B. “On the Notion of Cause, with applications to the Free Will Problem”, in: Feigl, H. & Brodbeck, M.. Op. cit., 397.
[28] Ver também: Feigl, H.. “The Logical Character of the Principle of Induction”, in: Feigl, H & Sellars, W. (Eds.), op. cit. e Reichenbach, H.. “On the Justification of Induction”, in: Feigl, H & Sellars, W. (Eds.), op. cit..
[29] Na verdade, roçamos aqui o fato de que, como acentua Rudner, é fictícia a diferenciação normalmente feita entre “indução" e "dedução". Cf. Rudner, R., op.cit., p. ...., nota.
[30] Feigl, H. “The Mind-Body Problems in the Development of Logical Empiricism”, in: Feigl, H. & Brodbeck, M.. Op. cit., p. 619
[31] Considero, aliás, totalmente descabeladas empresas como a que, por exemplo, Lyotard atribui à Fenomenologia: “La phénoménologie ... est une méditation logique visant à déborder les incertitudes mêmes de la science vers et par un logos excluant l’incertitude.” (Lyotard, F. La Phénoménologie. Paris: PUF, 1968, p. 23.
[32] A primeira dessas posturas foi muitas vezes chamada, em Filosofia, de ignava ratio (= razão ociosa), que, segundo Abbagnano, Kant define desta forma “ ... “todo principio que lleve a considerar como absolutamente cumplida la propria búsqueda de manera que la razón se tranquilice, como si hubiese terminado su tarea.” (Crítica de la Razón Pura, Dialéctica, Apéndice a la Dialéctica Trascentendal: De la mira final, etc.).” (Abbagnano, N., op. cit., p. 986).
[33] “Gosto e cor não se discutem”.
[34] Ducasse, C. J., op. cit..
[35] Mace, C. A. “Mechanical and Teleological Causation”, in: Feigl, H & Sellars, W. (Eds.), op. cit..
[36] Rudner, R. S.. Op. cit..
[37] Schlick, M. “Philosophy of Organic Life”, in: Feigl, H. & Brodbeck, M.. Op. cit..
[38] Abbagnano, N. Op. cit., p. 359-360.
[39] Ibid., p. 360.
[40] In: Abbagnano, N. Op. cit., p. 744.