quarta-feira, agosto 02, 2006

MÉTODO CIENTÍFICO E LOGANÁLISE: PRIMEIRO MÓDULO

Este curso on-line pretende expor as exigências a que a construção teórica da Loganálise, uma variação teórico-técnica da Psicanálise, se pretende submeter. Entre essas exigências, maior é a de permita “testabilidade intersubjetiva”, processo mediante o qual a comunidade científica e não científica possa validar ou invalidar, segundo determinados critérios consensuados, suas proposições. Para isso, naturalmente, se faz mister que a Loganálise seja clara e inambígua no discurso que emprega para veicular sua produção.
Clareza de discurso é cria de clareza de pensamento, como bem o expressa Boileau

"O que se concebe bem
Se enuncia claramente
E as palavras para dizê-lo
Vêm facilmente."
[1]

E Pessoa:

"Quando é alto e régio o pensamento,
Súdita a frase o busca
E escravo o ritmo o segue."
[2]

Clareza de pensamento, por sua vez, nasce de clareza de propósitos. Para que a clareza de nossos propósitos sustente a clareza de nosso pensamento e esta, a clareza de nosso discurso, iniciaremos essa primeira cadeira de nosso curso de especialização enunciando qual o objetivo último a que serve todo o empreendimento loganalítico. É ele:

Produzir e continuamente aperfeiçoar uma tecnologia * capaz de usar processos de comunicação para promover, profilática e terapeuticamente, a saúde mental humana.

Essa declaração de objetivos merece qualificações. A primeira delas é a de explicitar o que entendemos por tecnologia * e como a diferenciamos de técnica *[3]. Vejamos:
TÉCNICA:
· Lato sensu: Conjunto de procedimentos voltado para a concretização de um fim;
· Stricto sensu: Conjunto de procedimentos, não deduzidos de uma teoria, voltado para a concretização de um fim;

TECNOLOGIA: Conjunto de procedimentos, deduzidos de uma teoria, voltado para a concretização de um fim, exceto o de validar proposições.

Ilustremos o quadro acima. Digamos que uma família de agricultores passe, de pai para filho, há dezenas de anos o que entende como o melhor conjunto de procedimentos para produzir abóboras. Dentre esses procedimentos, estaria, supostamente, o de evitar plantar abóboras no outono, pois a longa experiência dessa família teria comprovado que as plantadas nessa época nascem “aguadas”, leia-se, sem gosto. Ninguém sabe o “porquê” de ser assim, mas todo o agricultor daquela família sabe que assim é, passando a informação para a geração seguinte, que respeitosamente a obedece, não plantando abóboras naquela estação. Frente às definições que vimos de avançar, trata-se, no exemplo, de uma técnica, que é passada, nessa família, de geração à geração, por um mero processo de repetição.

Suponhamos, entretanto, que alguém dessa família avente a hipótese de que, no outono, por essa ou aquela razão, o solo fique com um nível mais baixo de nitrato de prata e que é essa a causa da sensaboria das abóboras plantadas naquela estação. Isso, naturalmente, sugeriria o seguinte procedimento: adubemos o solo com nitrato de prata e poderemos plantar abóboras no outono, colhendo-as com o mesmo sabor das plantadas nas demais estações. Estaríamos, aqui, segundo a terminologia proposta, nos defrontando com uma tecnologia, não, com uma técnica, já que o procedimento em pauta deriva de uma teoria * sobre o que causa o menor sabor das abóboras plantadas no outono.

A ilustração – totalmente fictícia – acima, nos permite avaliar a vantagem da tecnologia sobre a técnica: essa última tende a manter-se inalterada através do tempo, fundamentado-se na tradição, enquanto a primeira, à custa de sua fundamentação teórica, sofre contínuo aperfeiçoamento. As considerações acima, certamente, (a) terão deixado claro porque, quando enunciei o objetivo da produção loganalítica, em vez de empregar o termo técnica, empreguei o termo tecnologia e, possivelmente, (b) terão levantado a suspeita de que, até hoje, dentro da comunidade psicanalítica, a transmissão dos procedimentos que objetivam a cura tem ficado mais no nível da técnica do que no da tecnologia, explicando o pouco progresso sofrido, durante mais de um século, por aqueles procedimentos.

A existência e desenvolvimento de uma tecnologia, portanto, depende da existência de uma teoria e, sem dúvida também, da qualidade dela. Uma melhor teoria produzirá uma tecnologia mais eficaz, uma pior, uma menos eficaz. E como diferençar, no que diz respeito a teorias, o melhor do pior, o falso do verdadeiro? Bem, aqui, voltamo-nos sobre o conceito de método *. Vejamos:

MÉTODO: Conjunto de procedimentos empregado para validar proposições.

MÉTODO CIENTÍFICO: Conjunto de procedimentos que emprega o princípio da não-contradição *, associado ou não a verificações empíricas, para validar proposições.[4]

PRINCÍPIO DE NÃO-CONTRADIÇÃO: Princípio que estabelece que um ente não pode ser e não ser alguma coisa, sob o mesmo aspecto, ao mesmo tempo.

Como se vê, um método é, na verdade, uma técnica, se consideramos o sentido lato dessa última: não passa de um conjunto de procedimentos voltado para a concretização de um fim. Esse fim, todavia, é bastante específico. Por isso, stricto sensu, diferençamos, método de técnica. Qualquer teoria, para ser consensualmente validada, tem que explicitar o conjunto de procedimentos através de que pretende validar suas proposições, ou seja, seu método. Essa técnica de validação de proposições, esse método, entretanto, pode ser ou não científico. Um dos expoentes da história do catolicismo, por exemplo, explicitou da seguinte forma seu critério de validação de proposições: credo quia absurdum. Seja: creio porque é absurdo. Aqui não falta método – e cada um tem lá o que merece! – mas, certamente, tal critério de validação não poderia encontrar abrigo dentro do que tem sido chamado de método científico, já que, como posto, esse último submete-se ao princípio lógico da não-contradição e este, certamente, invalida absurdos.
Voltemos às nossas pretensões. Expusemos como nosso propósito “aperfeiçoarmos uma tecnologia capaz de usar processos de comunicação para promover a saúde mental humana”. Como toda a tecnologia depende de uma teoria, precisamos de uma teoria que nos afirme, no mínimo, algo como – “processos de comunicação de tipo X promovem saúde mental no ser humano” e “processos de comunicação de tipo Y promovem doença mental no ser humano” – para desenvolvermos e aperfeiçoarmos procedimentos que aumentem a presença dos processos de comunicação de tipo X e diminuam a dos de tipo Y. Pois bem, poderemos produzir e, certamente, colher na literatura relevante, dezenas de proposições equivalentes às supra-referidas, mas, qual método escolheremos para considerar tal proposição válida, tal outra inválida?
Passo, em seguida, a delinear as escolhas que feitas pela Loganálise para estabelecer sua Constituição Epistemológica, ou seja, o conjunto de regras a que deve obedecer sua produção teórica para ser consensualmente validada. No vocabulário usual dos filósofos da ciência, o que chamei aqui de Constituição Epistemológica, toma o nome de metateoria *.

METATEORIA: Conjunto de pressupostos, arbitrariamente escolhidos, a que se deve submeter a construção de uma teoria.

Retomemos nosso caminho: buscamos uma teoria que nos diga, no mínimo, algo como – “processos de comunicação de tipo X promovem saúde mental no ser humano” e “processos de comunicação de tipo Y promovem doença mental no ser humano” – para, a partir dela, fundamentar e desenvolver uma tecnologia. Ora, tal tipo de proposições inclui inevitavelmente termos – tais como os de “doença”, “saúde”, “mental”, “humano”, “comunicação”, etc. – cujo emprego pode ser tudo, menos consensual. De que recurso, então, faremos uso para, pelo menos entre nós, gerar tal consenso, até para que, ao divergirmos, sabermos sobre que, que fato, estamos divergindo? Vamos definir o termo, conceituá-lo, denotá-lo, conotá-lo, transmitir operacionalmente ou ad modum ponens seu significado? E, aliás o que significa, exatamente, definir, conceituar, denotar, conotar etc.? Para começar a responder a essas perguntas, refaçamos alguns passos de um caminho que já trilhei anteriormente[5]. O primeiro deles será esclarecer as noções de conotação* e denotação*, o segundo, propor uma hipótese sobre como ocorre a gênese psicológica de um conceito. Para os conceitos de conotação e denotação, acompanhemos Abbagnano:

"La distinción que la lógica moderna de corte tradicional há establecido entre los dos elementos del concepto, se funda en la distinción entre los aspectos del significado. Tales elementos del concepto son denominados algunas veces comprension y extensión; otras, intensión y extension y, otras aún, connotación y denotación. La primera pareja de terminos fue introducida por la Lógica de Port Royal; la segunda por Leibniz; la tercera por Stuart Mill. Este último, propuso restringir el significado de significado a la connotación, denominando la denotación a la referencia objetiva. Decía: "Toda vez que los nombres dados a objetos aportan alguna información, o sea toda vez que ellos, precisamente, tienen un significado, el significado no esta en aquello que denotan sino en lo que connotan. Los únicos nombres de objetos que no connotan nada son los nombres proprios, y estos, hablando com exactitud, no tienen significado"[6]. Lo que Stuart Mill entendia por connotación aparece claro en el siguiente pasaje: "La palabra hombre, por exemplo, denota Pedro, Juana, Juan y un número indefinido de otros individuos, de los cuales, tomados como una clase, tal palabra es el nombre. Pero dicha palabra se les aplica en cuanto poseen, y para significar que poseen, determinados atributos." (Ibid.). Los atributos que constituyen al hombre, esto es, corporeidad, racionalidade, etcétera, por ejemplo, forman, por lo tanto, la connotación del nombre "hombre": lo cual la tradición filosófica se denomina "esencia" o, más tarde, "concepto"."[7]

Em posse de tal diferenciação, façamos algumas considerações sobre a gênese psicológica de um conceito, para, melhor entendendo a natureza desse último, nos voltarmos sobre o problema de sua validação.

"A história de um conceito, a nosso ver, encerra as seguintes etapas:

1. Construção subliminar de uma conotação
2. Delimitação, orientada pela conotação subliminar, dos fenômenos denotados por aquela conotação
3. Exercício de reflexão sobre o universo de fenômenos denotados de forma a explicitar a conotação a eles subjacente
4. Explicitada a conotação, retorno sobre o conjunto denotado com o fito de
4.1. Excluir do conjunto aqueles fenômenos que, na fase (ii), em virtude da natureza subliminar das operações que constituíram o conjunto dos denotados, haviam sido indevidamente nele incluídos
4.2. Incluir no conjunto aqueles fenômenos que, pelas mesmas razões, haviam sido dele indevidamente excluídos"[8]

Dada a importância desse processo, vamos descrevê-lo em outras palavras e, em seguida, ilustrá-lo:
Etapas da formulação de um conceito:
(1) percebo subliminarmente que certos entes têm algo em comum (proto-conotação);
(2) passo a construir uma listagem desses entes (proto-denotação);
(3) observo essa listagem e reflito sobre ela até ser capaz de explicitar qual é aquele “algo” que eles têm em comum (conotação vera);
(4) volto-me sobre listagem para corrigi-la, adequando-a com mais precisão (denotação vera).

Ilustração: digamos que eu comece a construir subliminarmente a conotação do que irei chamar de “esfera” (proto-conotação), selecione uma série de objetos que me parecem merecer ser chamados de “esféricos” (proto-denotação) e, refletindo sobre eles, decida que a melhor descrição da característica que me levou a aproximá-los seria dizer que são “sólidos gerados pela rotação completa de um semi-círculo em torno de seu diâmetro” (conotação vera). Agora, posso voltar-me sobre a listagem que eu havia anteriormente feito para verificar se, de fato, todos os objetos nela incluídos, conformam-se a “conotação” que atribuí ao nome “esfera”. Percebo, então, que, entre esses objetos, eu havia descuidadamente incluído um icosaedro regular – sólido cuja superfície é formada por vinte polígonos regulares e cuja forma se aproxima de uma esfera – verifico que ele não se conforma à conotação que explicitei e, portanto, retiro o icosaedro do universo de objetos que eu havia listado como esféricos, corrigindo minha denotação (denotação vera). (Algum processo dessa ordem ocorreu, por exemplo, quando a OMS retirou a homossexualidade de entre os entes denotados como representativos de “doença mental”).
Posto isso, vejamos, agora, quais os critérios adotados, nesse trabalho, para a validação de conceitos e quais as sugestões propostas sobre como tais critérios. Antes, enriqueçamos nosso Glossário:

DEFINIENDUM: Termo a ser definido.

DEFINIENS: Termo ou termos definidores.

Voltemos à minha tese, onde nos encontraremos de novo com o definiendum “esfera”:

"Grande parte do que faremos nos capítulos seguintes será conceituar, ora com maior, ora com menor nível de precisão. Para fazê-lo tivemos, a cada momento, que optar, que seguir este ou aquele autor, que propor esta ou aquela alteração e, naturalmente, a cada momento, assaltava-nos a dúvida sobre a validade das decisões em curso. Essa dúvida assomou-nos tantas vezes que, por fim, fomos levados a nos indagar sobre os critérios a partir de que deveria realizar-se essa validação. Passamos a sumariar o resultado dessas indagações. Adotamos dois critérios para validar a qualidade de uma definição[9]:

Primeiro critério: conformidade com o uso (comunicabilidade). quando uma definição não preencher esse critério, chamá-la-emos de incorreta. É, pois, incorreta a seguinte definição:

Doença mental (Definiendum *) Þ sólido gerado pela rotação completa de um semicírculo em torno de seu diâmetro (definiens *).

A incorreção, no caso, é óbvia, pois o definiens acima transcrito corresponde tradicionalmente ao definiendum "esfera", que nenhum uso considera sinonímica com o definiendum "doença mental", que, por sua vez, não é vazio de significado. A incorreção de uma definição, entretanto, nem sempre é óbvia e, por vezes, devemos voltar-nos sobre um universo imprecisamente delimitado de elementos que o termo denota, para julgarmos o grau de correção a que a conotação proposta pode aspirar.

Segundo critério: adequação ao fim (conveniência)[10]. quando uma definição não preencher esse critério, chamá-la-emos de inoperante. ... Um exemplo mais rasteiro da não-operatividade de uma definição é a seguinte: para o fim implícito na proposição - "Estou com uma vontade de comer uma bala! Você tem alguma aí para mim?" - é absolutamente inoperante considerar o definiendum "bala" como equivalente ao definiens "projétil com que se carregam armas de fogo".
Expostos os dois critérios de validação de conceitos, logo se apresentam múltiplas questões, p.e.: como conjugar a aplicação desses critérios? A aplicação de um tem precedência sobre a de outro? Aplicado um, o outro não se aplica? Caso se responda afirmativamente a essa última pergunta, qual o critério que nos permite escolher entre os dois critérios? Proponho o seguinte:
O primeiro critério a ser aplicado é o critério da correção. Onde não houver conotação explícita e universal para o definiendum, esse critério é usado apenas para estabelecer limites amplos dentro de que há "correção", não havendo fora deles. Assim, embora a conotação do definiendum "doença mental" não seja universal nem explícita, foi-nos possível perceber a incorreção de equacioná-la à tradicionalmente adscrita ao definiendum "esfera". Passado o critério de correção, aplica-se, a seguir o critério de operatividade. Para isso, é claro, o uso a que pretendemos votar o conceito deve estar explicitado, sendo que, ainda assim, a operatividade dele nem sempre se revela de imediato, sendo, por vezes, necessário operar realmente com ele, para que sua adequação ou não ao fim pretendido seja constatada."[11]

Como afirmei na nota de número 9, há contextos em que vale marcar a diferença – para outros irrelevante – entre “definições conceituais” e “definições não conceituais”. Para que se compreendam as razões dessa afirmação, faz-se mister abordarmos os seguintes definienda: proposições analíticas*, proposições sintéticas *, ciências factuais *, ciências formais * e condição salva veritate*
Ciências formais * são aquelas que, como a Lógica e a Matemática, têm o seu valor de verdade independente de qualquer constatação empírica. Por exemplo, a afirmação Matemática de que a =df 2b torna automaticamente verdadeira a de que b =df a/2 e falsa a de que b =df a/20, sem que para se sustentar isso seja necessária qualquer constatação empírica. As ciências formais, simplesmente, estipulam e fiscalizam o cumprimento do que foi estipulado. Já nas chamadas ciências factuais * a atribuição de verdade ou falsidade de uma proposição passa por outros caminhos. A famosa equação e = mc², pertencente ao domínio da Física, uma ciência factual, não depende apenas de cálculos formais, mas, essencialmente, da obtenção de dados empíricos, para que possa ser confirmada.

Acrescente-se que, em Filosofia da Ciência, as proposições cuja validade depende apenas de obedecerem ou não a certas regras arbitrariamente estabelecidas são freqüentemente chamadas de proposições analiticas *, enquanto as que dependem de consulta ao empírico para a verificação de sua validade tomam o nome de sintéticas *. A equação e = mc² é uma proposição sintética porque foi introduzida com todos os seus termos interpretados, seja, onde temos “e” ,leia-se “energia”, onde, “m”, leia-se “massa”, onde, “c”, leia-se “velocidade da luz”. Essas interpretações dos termos da equação exigem recurso a constatações empíricas para a verificação da verdade ou falsidade da equação. Bastava que um de seus termos não fosse interpretado para que essa equação se transformasse em uma proposição analítica. Se “e”, por exemplo, não tivesse um significado próprio, a proposição “e =df mc²” indicaria apenas que eu estou estipulando que, em minha teoria “e” estará sendo sempre empregado como equivalente a “mc²” e não há nenhuma constatação empírica a ser feita para que se determine a verdade ou falsidade disso. Cabe, apenas, a fiscalização de se essa equivalência estipulada está sendo obedecida nas proposições que compõem a teorização que a pressupõe. Esclarecidos esses termos, podemos entender por que, para podermos considerar um definiendum adequadamente definido, seu definiens, além de satisfazer os dois critérios alinhados em minha tese, deve preencher um outro, mencionado por Rudner[12]: a condição salva veritate.
A condição salva veritate será considerada preenchida se, e somente se, o definiendum em pauta puder ser substituído por seu definiens – e vice-versa – em qualquer declaração, sem que essa declaração tenha alterado seu valor de verdade. Aquele autor dá um exemplo[13] que torna bem clara a condição salva veritate: se o definiens "fêmea do javali" é adequado para o definiendum "gironda", ele deve manter o valor de verdade – ou de falsidade – das frases em que substituir esse último. Assim: "Elefantes se reproduzem cruzando com girondas" é tão falso quanto " Elefantes se reproduzem cruzando com fêmeas do javali" e "Javalis se reproduzem cruzando com girondas" é tão verdadeiro quanto "Javalis se reproduzem cruzando com sua fêmeas". Feitos esses esclarecimentos, podemos entender por que Rudner considera inadequadas expressões como "definição operacional" e "definição ostensiva". Vejamos:

"Incidentalmente, a existência e a irrefutabilidade prima facie da condição salva veritate lançam dúvidas sobre a propriedade com que as chamadas "definições operacionais" e "definições ostensivas" são consideradas definições, de qualquer modo. Parece evidente que os processos designados por essas duas expressões se consideram definições simplesmente porque se trata de processos por meio de que se comunicam os significados de termos. Mas não é preciso refletir muito para se revelar que a comunicação de significado não é uma condição necessária nem, certamente, suficiente, para que alguma coisa atinja a posição de uma definição.
Não é uma condição suficiente porque os significados são transmitidos por uma quantidade imensa de coisas (desde a inclinação de uma sobrancelha até à inclinação da asa de um bombardeio) a que seria absurdo chamar "definições".

Que não é necessário a uma definição transmitir significado é revelado pela existência do grande número de definições na Matemática e na Lógica puramente formais, que não comportam significado e se apresentam, unicamente, para servirem propósitos de conveniência notacional.
A esta luz, "definição operacional" e "definição ostensiva" podem ser reconhecidas como denominações impróprias. A primeira refere-se ao processo de transmissão de significado de um termo mediante a especificação das operações requeridas para comprovar a presença da coisa a que o termo se refere; a segunda refere-se ao processo de transmissão de significado de um termo expondo as coisas a que o termo se refere. Seria mais exato denominar esses processos como "transmissão operacional de significado" e "transmissão de significado por apresentação ostensiva"."[14]

CIÊNCIA FACTUAL: Toda aquela cujas proposições, para serem validadas, devem obedecer a (1) regras formais de construção e derivação e (b) verificações de ordem empírica. Ex.: Física, Química, Biologia, Psicologia.

CIÊNCIA FORMAL: Toda aquela cujas proposições, para serem validadas, devem, apenas, obedecer a regras formais de construção e derivação. Ex.: Lógica, Matemática.

CONDIÇÃO SALVA VERITATE: Exigência de que, para que reconheçamos uma definição * como adequada, a substituição do definiendum por seu definiens e vice-versa não altere o valor de verdade de qualquer proposição em que tal substituição ocorra.

DEFINIÇÃO: Qualquer relação entre dois conjuntos de termos – o definiendum * e o definiens *– que obedeça a condição salva veritate *. Ex.: “a = 2b”, e “clepsidra = relógio de água”.

DEFINIÇÃO OPERACIONAL: Expressão inadequada freqüentemente empregada para significar o que merece mais apropriadamente ser nomeado de transmissão operacional de significado * (Cf.).

DEFINIÇÃO OSTENSIVA (ou AD MODUM PONENS): Expressão inadequada freqüentemente empregada para significar o que merece mais apropriadamente ser nomeado de transmissão ostensiva (ad modum ponens) de significado * (Cf.).

PROPOSIÇÃO ANALÍTICA: Proposições cujo valor de verdade é arbitrariamente estabelecido.

PROPOSIÇÃO SINTÉTICA: Proposições cujo valor de verdade depende de verificação empírica.

TRANSMISSÃO OPERACIONAL DE SIGNIFICADO: Conjunto de instruções que, obedecidas, leva o sujeito a defrontar-se com o(s) objeto(s) referido(s) por um determinado termo. Exemplo: Clepsidra é aquilo com que você se defronta na prateleira do meio da estante do meu quarto.

TRANSMISSÃO OSTENSIVA DE SIGNIFICADO: Transmissão da relação entre um termo e o(s) objeto(s) referido(s) a que ele se refere através do apontamento direto desse(s) objeto(s). Exemplo: Clepsidra é isto (e indico com o dedo).

As considerações acima nos aparelham com um vocabulário mínimo para que possamos enfrentar eficazmente os complexos obstáculos que se opõem à desejável padronização no uso dos termos que compõem uma teoria. Essa aproximação, como nos lembra Rudner, será muitas vezes parcial, gradual e tentativa:

“a especificação de uma condição suficiente para a aplicação de um termo não determina inteiramente o uso desse termo nem lhe dá seu “pleno significado” ... Assim, uma teoria pode compreender a afirmação “Se um organismo tem sangue quente, então, é um animal” e também a afirmação “Se um organismo tem coluna vertebral, então, é um animal”. Cada um desses enunciados determina parcialmente o uso do termo “animal”; num certo sentido, ambos, tomados em conjunto, determinam mais completamento o uso do que cada um per se, mas nenhum deles, separada ou conjuntamente, determina completamente o uso do termo.”[15]

Assim, em vários momentos de nossos futuros trabalhos, teremos que nos contentar com tais “aproximações parciais” do significado desse ou daquele termo. Isso, contudo, não deverá fazer que percamos de vista qual o status conceitual dos vários termos com que estamos operando. Vejamos como esse cuidado está posto em minha já referida tese:

"a construção de um conceito científico de doença mental ocorre na área de intercessão de uma multiplicidade de conceitos ontológicos, epistemológicos, biológicos, neurológicos, psicológicos, sociológicos, políticos, antropológicos, etc., nem sempre – para não dizer quase nunca – investidos de maior clareza. Assim, diante de termos como "númeno", "fenômeno", "determinismo", "teleologia", "explicação", "compreensão", "conceito", "teoria", "significante", "significado", "sistema", "equilíbrio", "homeostase", "desenvolvimento", "integração", "fixação", "regressão", "volição", "cognição", "prazer", etc., vimo-nos defrontados com as seguintes alternativas:

1) Deixar de empregar o conceito
2) Empregá-lo sem defini-lo
3) Empregá-lo adscrevendo-lhe uma definição sucinta
4) Empregá-lo adscrevendo-lhe uma definição algo mais extensa

Assim sendo, para exemplo, sofreram o tratamento (i) os mecanismos de defesa freudianos (repressão, projeção, deslocamento, etc.); o tratamento (ii), os conceitos de significante, significado, integração, etc.; o tratamento (iii) os conceitos de determinismo, de livre arbítrio, de desenvolvimento, etc.; o tratamento (iv) os conceitos de sistema, de equilíbrio, de teleologia, etc. Os critérios de decisão para a distribuição nos diversos tratamentos foram a centralidade do conceito para a teoria e o grau de acordo reinante em relação ao significado do conceito (quanto maior o acordo, menor, é claro, a necessidade de definição explícita). ... os tratamentos (ii) e (iii) permitiram que fossem integrados numa mesma rede teórica uma vasta quantidade de conceitos em nosso ver extremamente relevantes para a conceituação pretendida, o que, fosse exigido o grau (iv) de precisão definitória, seria inexeqüível por falta do tempo e da especialização requeridos. Esforçamo-nos, todavia, para que a margem de imprecisão assumida não prejudicasse a inteligibilidade do todo"[16]

Saber que, muitas vezes, estaremos trabalhando com termos pobremente delimitados, não nos deverá, todavia, fazer esquecer de que, freqüentemente, estaremos trabalhando na direção de construir adequadas definições conceituais[17] para grande parte dos termos que irão compor nossas teorizações.

Terminamos, aqui, nosso primeiro módulo. Até o próximo.

[1] Tradução de uma estrofe em francês que mantenho de memória : "Ce que l'on conçoit bien / S'ennonce clairement / Et les mots pour le dire / Arrivent aisément."
[2] Pessoa, F. Citado de memória.
[3] As palavras que, ao serem aqui introduzidas, o forem em itálico, seguidas de asterisco, encontrar-se-ão definidas em Glossários Parciais e em um Glossário Geral, disponível ao fim deste curso.
[4] Cf. a formulação de Rudner: “O método de uma ciência é, com efeito, o fundamento lógico em que baseia sua aceitação ou rejeição de hipóteses ou teorias.” (Rudner, R. S.. Filosofia da Ciência Social. Rio: Zahar, 1969, p. 19.)
[5] Ebraico, L. C. de M. O Conceito de Doença Mental. 1976. Tese (Mestrado) - PUC, Rio de Janeiro, RJ, 1976. (A época que cursei o Mestrado, ainda se exigiam “teses” para esse nível de graduação. Hoje, a exigência é do que se convencionou chamar “dissertação”, em que o mestrando não precisa defender nenhuma hipótese ou teoria original, bastando que exponha um razoável conhecimento da literatura relativa ao tema que escolheu.)
[6] Poderia ter afirmado: “têm entes referidos, mas não tem significado”.
[7] Abbagnano, N. Diccionario de Filosofia. México: Fondo de Cultura Económica, 1963, p. 1060-1061.
[8] Ebraico, L. C. de M. Op. cit., p. 84-5.
[9] Na verdade, em determinados contextos, é importante deixar explícita a diferença entre “definições conceituais” e “definições não conceituais”. Logo apontaremos essa diferença.
[10] Freud tinha perfeita ciência de que a escolha de um conceito é em grande parte arbitrária, estando subordinada ao tipo de uso que se pretende fazer dele. Ora, frente à ambição de explicar o mais amplamente que possível o humano, a equivalência entre “psíquico” e “consciente” – por deixar de fora do espaço explicativo da Psicologia fenômenos como os sintomas psiconeuróticos, os sonhos e as parapraxes – muito mais do que errada, era inconveniente: “a equivalência convencional entre o psíquico e o consciente é totalmente inconveniente” (“die Konventionelle Gleischstellung des Psychischen mit dem Bewubsten ist durchaus unzweckmäbig”: S. Freud, “Das Unbewubte”, in GW, vol. X, p. 266. A ESB – 1974, vol. 14, p. 193 – traduz o alemão “unzweckmässig” e o inglês “inexpedient” – SE., 1971, vol. 14, p. 167-8 – por “inadequada”, fazendo que se perca a especificidade implicada por “inconveniente”).
[11] Ebraico, L. C. de M.. Op. cit., p. 8-10.
[12] Rudner, R. S. Filosofia da Ciência Social. Rio: Zahar, 1969.
[13] Rudner, R. S. Op. cit., p. 34.
[14] Rudner, R. S. Op. cit., p. 40. Poderíamos ainda mais exigentes e preferir expressões como “transmissão operacional de referência” e “transmissão ostensiva de referência”. Acrescente-se que a chamada “definição ostensiva” também é conhecida como “definição ad modum ponens”.
[15] Rudner, R. S. Filosofia da Ciência Social. Rio: Zahar, 1969, p. 81-2.
[16] Ebraico, L. C. de M. O Conceito de Doença Mental. 1976. Tese (Mestrado) - PUC, Rio de Janeiro, RJ, 1976, p. 5-6.
[17] Permita-me recordar-lhe que definições conceituais são definições interpretadas – como no exemplo em que e = df mc² aparece como uma proposição analítica – e as não conceituais são definições não interpretadas – como quando oferecemos a = df 2b –como exemplo desse mesmo tipo de proposição.